domingo, 24 de fevereiro de 2008

C U B A


Após quase meio século no poder, líder cubano enfrentou inúmeros rivais políticos, mas foi vencido pela saúde

Líder do último governo comunista do Ocidente, Fidel Castro, 81 anos, se manteve no poder durante quase meio século e sobreviveu a 638 planos de assassinato, mas, no último ano e meio, vem travando uma batalha contra a morte, limitado por um estado de saúde que ontem fez com que renunciasse à presidência de Cuba.
“Não concorrerei nem aceitarei – repito –, não concorrerei nem aceitarei o cargo de presidente do Conselho de Estado e comandante-em-chefe”, afirmou o líder cubano em um artigo publicado na edição de ontem do Granma, jornal oficial do Partido Comunista de Cuba.
Fidel manteve um ritmo frenético de atividade política que só foi interrompido pelo abrupto afastamento em 27 de julho de 2006, quando se submeteu à primeira cirurgia no intestino.
A última batalha do “Comandante” começou na noite de 31 de julho de 2006, quando surpreendeu Cuba e o mundo com uma histórica proclamação na qual anunciou que cedia o poder ao irmão, Raúl, por estar sofrendo uma crise intestinal aguda com sangramentos freqüentes.
A renúncia de um dos mais importantes políticos do século 20 e o último dos dirigentes sobreviventes da Guerra Fria repercutiu em Cuba e no mundo. Enquanto Estados Unidos e União Européia conclamam a ilha para o restabelecimento da democracia, outros chefes de Estado, como os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Venezuela, Hugo Chávez, destacaram a importância de Fidel como ponta-de-lança da esquerda mundial, ainda que convalescente.
Enquanto isso, na Flórida, reduto de milhares de cubanos anticastristas, a notícia da renúncia levou gente às ruas com bandeiras e cartazes em comemoração à saída de cena do líder. Também nos EUA, os pré-candidatos à Casa Branca evitaram se posicionar sobre uma eventual suspensão do bloqueio econômico à ilha.
O processo sucessório em Cuba será definido no próximo domingo, quando a Assembléia Nacional se reúne para escolher o sucessor de Fidel.
As dúvidas agora se avolumam: quem será o novo presidente (analistas apontam Raúl como sucessor “natural” de Fidel)? Como fica Cuba sem o líder que se acostumou a aplaudir desde 1959? O embargo econômico dos EUA continuam sem a sombra do Comandante? Perguntas ainda sem respostas, que somente confirmam o mito paradoxal que Fidel Castro continua a ser, mesmo após sua saída do poder.


SEM FORÇAS, FIDEL DÁ ADEUS AO PODER.


HAVANA – Sete em cada dez cubanos vivos só conheceram um único presidente: “El Comandante”. No poder há 49 anos, um recorde entre os estadistas vivos, Fidel Castro, último líder comunista do Ocidente, renunciou ontem à presidência de Cuba.

Aos 81 anos, Fidel comunicou sua aposentadoria por meio de uma carta publicada pelo diário oficial Granma. No texto, ele fala dos problemas de saúde e aponta para a necessidade de o povo cubano acostumar-se com sua sucessão. “Preparar (os cubanos) para minha ausência, psicológica e politicamente, era minha principal obrigação depois de tantos anos de luta.” Fidel escolheu a dedo o momento para se afastar. Em janeiro, os cubanos elegeram 614 novos integrantes do Parlamento, que deveriam ratificar o nome de Fidel ou escolher um novo líder em votação marcada para domingo – provavelmente o de seu irmão Raúl Castro, que há um ano e meio governa o país em caráter temporário. Para dar ares definitivos à interinidade de Raúl, ele optou pela renúncia. “Comunico que não aspirarei nem aceitarei o cargo de presidente do Conselho de Estado e de comandante-em-chefe”, disse Fidel, na carta.

Centralizador até na hora da despedida, foi assim, por vontade própria, com dia e hora marcados, que o velho revolucionário saiu de cena. Não foi um adeus, como deixou claro o próprio Fidel em sua carta-renúncia. Foi-se o comandante, mas ficou o companheiro, que continuará comandando o país dos bastidores.
Nas ruas de Havana, embora conscientes do momento histórico que representava a renúncia, os cubanos reagiram com uma discreta indiferença. “Isso não é notícia”, disse Elizardo Sánchez, um dos líderes da dissidência e fundador da Comissão Cubana para Direitos Humanos e Reconciliação. “A renúncia já era esperada e não muda a situação dos direitos humanos nem o sistema de partido único. Não há razão para comemorar.”
Sem grandes demonstrações de surpresa, cubanos críticos da ditadura local se dividiram ontem entre o ceticismo e o otimismo cauteloso quanto à chance de mudanças em Cuba após a saída de Fidel.
Oswaldo Payá, líder do Comitê Cidadão de Reconciliação e Diálogo e um dos mais proeminentes dissidentes locais, afirmou em comunicado que a renúncia tem indiscutivelmente importância histórica para a vida de todos os cubanos. “Terminam quase cinco décadas de poder de um homem, e sempre dissemos que o substituto de Fidel Castro deve ser o povo soberano.”
Mas para muitos outros dissidentes, como Vladimiro Roca, do Partido Social Democrata (grupo considerado ilegal pelo governo), não há mudança nenhuma. “Não creio que, só por ter renunciado ao cargo, Fidel tenha renunciado ao poder. Hoje (ontem), para os cubanos, sua saída é só uma notícia de jornal”, disse Roca, em Havana.
“O melhor para nós seria que os irmãos Castro se afastassem e dessem início à democratização, mas tenho poucas esperanças. É a crônica de uma morte anunciada”, prosseguiu Roca.
Também é cuidadoso Alejandro González, para quem que Cuba não mudará e terá outros 50 anos de ditadura, com Raúl Castro ou quem quer que seja, se o povo não se levantar para lutar por direitos.
González fazia parte de um grupo de 75 detidos condenados por conspiração contra o regime em 2003, sete dos quais foram libertados neste mês após a mediação da Espanha.
Ele e outros três ex-presos estão exilados em Madri. Ao menos um deles, José Gabriel Ramón, exprime ainda menos excitação pela renúncia: “Vocês se entusiasmam, mas Fidel está aí, nos bastidores”.
Mesmo assim, para Oscar Espinosa Chepe, um membro do Grupo dos 75 que foi libertado em 2004 por razões médicas, a saída de Fidel é um golpe forte para os elementos mais imobilistas do governo. “Agora pode se iniciar um processo de mudanças, principalmente na economia.”
O cubano Arsenio Cícero, 52, que deixou Cuba em 1999 e vive nos Estados Unidos, crê que essa mudança já começou. “Fiquei muito feliz ao saber que Fidel renunciou. O regime já vem se transformando, só não tão rapidamente quanto muitos cubanos anti-Castro de Miami querem”, afirmou, de Madison, no Wisconsin, pouco após votar no democrata Barack Obama na prévia do Partido Democrata pela candidatura à Casa Branca. “Quem sabe, com sangue novo, também a relação EUA-Cuba não possa mudar”, espera Cícero.
O ceticismo de muitos cubanos reflete o fato de não haver surpresas na sucessão de Fidel, que está afastado da presidência desde 31 de julho de 2006.
Na época, a notícia foi recebida com muito mais surpresa pelos cubanos, que não sabiam o que seria da ilha sem Fidel e ainda tinham dúvidas sobre a capacidade de Raúl manter-se no poder.
Aos poucos, no entanto, depois do afastamento e de algumas cirurgias, ficou claro que a Cuba pós-Fidel não seria necessariamente o fim do regime. Enquanto Raúl assumia seu espaço e acenava com reformas, Fidel se recuperava, recebia chefes de Estado e se dedicava a escrever artigos, muitos deles dando sinais de que a sucessão estava próxima. Em dois deles, escritos em dezembro, Fidel dizia que não estava mais “apegado ao poder”, o que muitos analistas interpretaram, na época, como sendo um prenúncio da renúncia. Fidel confirmou isso na carta de ontem.

REPEERCUSSÃO

Niemeyer

O arquiteto brasileiro se emocionou com a carta renúncia do amigo Fidel Castro. Primeiro por ser citado no texto onde Fidel diz: " Penso como Niemeyer, que é preciso ser consequente até o final". Depois, porque um dos seus cinco netos , Carlos Eduardo que está em Cuba há um mês, telefonou para dar a notícia de manhã cedo e contou detalhes da repercussão em Havana.“Meu neto ficou profundamente emocionado vendo a tristeza que cobre o povo cubano. Mas ao mesmo tempo disse que os cubanos permanecem unidos, de mãos dadas, prontos para enfrentar o grande inimigo, os Estados Unidos”, relatou.

Chávez

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, afirmou que “a Revolução Cubana não depende de uma pessoa, de uma conjuntura, e nem de uma circunstância”. Para ele, Castro “não se recuperou totalmente” do problema de saúde e fez “um gesto que o enaltece, de desprendimento pessoal”. O “Comandante” dá, assim, “uma lição aos que acusam homens como Fidel de se agarrar ao poder deseperadamente”. “Fidel não renuncia ou abandona nada, e sim passa a ocupar o posto que deve ocupar na Revolução Cubana e na revolução da América Latina”, disse Chávez. “Qualquer um de nós teria feito o mesmo. Diante da possibilidade de ser reeleito presidente, ele se adiantou e anunciou sua decisão de abrir caminho para outros companheiros. Fidel estará sempre na vanguarda, homens como Fidel jamais se aposentam”.

Evo Morales

O presidente da Bolívia, Evo Morales, qualificou de “dolorosa” a renúncia de Fidel, seu mentor e aliado político. ”Sinto muito, aprendi muito com ele, trabalhando pela unidade e pela solidariedade.” Castro é um “líder histórico que fará muita falta aos movimentos sociais que lutam por transformações profundas”, disse.

China

A China saudou o “dirigente revolucionário e velho amigo” Fidel, e manifestou o desejo de que ambos os países comunistas mantenham as boas relações. “A China continuará consolidando e desenvolvendo suas relações de cooperação amistosa”, disse o governo, em nota.

Rússia

O líder do Partido Comunista russo, Guennadi Ziuganov, afirmou que Fidel renunciou à presidência de Cuba como um “político genial”. “É uma decisão corajosa e estou convencido de que ao tomá-la, Fidel Castro foi guiado pelos interesses de seu país e seu povo”, declarou.


União Européia

A União Européia reiterou a oferta de diálogo político com Cuba para um progresso pacífico de transição para uma democracia pluralista. “Reiteramos nossa predisposição para ter um diálogo político construtivo com Cuba para alcançar os objetivos da posição comum da União Européia em suas relações com a ilha”, disse em Bruxelas John Clancy, porta-voz do comissariado europeu de Desenvolvimento e Ajuda Humanitária.

Anistia Internacional

A Anistia Internacional afirmou que a renúncia de Fidel deve ser aproveitada pela “nova liderança cubana” para introduzir “as reformas necessárias que garantam a proteção dos direitos humanos na ilha”.

EUA mantêm restrições

Apesar da saída de Fidel, por enquanto nada deve mudar em relação ao embargo econômico e à política americana para Cuba.

WASHINGTON

A saída de Fidel Castro não deve modificar, por enquanto, a política dos Estados Unidos em relação a Cuba, já que o governo americano prometeu desistir de seu programa de isolamento somente em caso de eleições livres – uma exigência reiterada ontem pelo presidente George W. Bush.
Em visita a Ruanda, Bush reagiu ao afastamento de Fidel Castro declarando que “deveria constituir o início de uma transição democrática para o povo cubano”, mas teve o cuidado de não enviar qualquer sinal de que a política dos Estados Unidos para Cuba poderia mudar.
O “primeiro passo” deve ser a libertação dos prisioneiros políticos, considerou o presidente americano, pedindo à comunidade internacional que contribua para instalar instituições democráticas em Cuba. “Vamos ajudar. Os Estados Unidos vão ajudar o povo cubano” a construir uma democracia, afirmou Bush.
“Finalmente haverá um debate interessante. Alguns vão sugerir a promoção da estabilidade. Claro que, enquanto isso, os prisioneiros políticos seguirão apodrecendo em suas celas, e a condição humana continuará patética em muitos casos”, comentou o dirigente.
O número dois do departamento de Estado americano, John Negroponte, descartou uma suspensão imediata do embargo que os Estados Unidos impõem há 45 anos à ilha comunista. “Não posso imaginar que isso aconteça num futuro próximo”, declarou Negroponte.
Durante seus dois mandatos, Bush dedicou muitos recursos para pressionar Cuba. Ele criou em 2003 uma comissão para contribuir para a derrota do regime castrista, e reforçou o embargo no ano seguinte.
Em 2006, quando Fidel Castro já estava gravemente doente, o governo americano rejeitou a idéia de utilizar a doença para alimentar uma crise em Cuba, limitando-se a reiterar suas exigências de eleições livres e mudanças democráticas.
Ontem, vários membros da Câmara de Representantes dos Estados Unidos escreveram à secretária americana de Estado, Condoleezza Rice, para exigir “uma revisão completa” da política para Cuba, após a renúncia do presidente Fidel Castro.
No total, 108 congressistas, entre eles oito republicanos, afirmam que “depois de cinqüenta anos já é hora de pensar em algo novo”, em referência ao embargo econômico que pesa sobre a ilha desde 1962.
“Uma revisão completa da política americana está claramente na ordem do dia”, afirmam os legisladores, incluindo vários dos mais severos críticos do embargo no Congresso, os democratas James McGovern e Bill Delahunt, assim como o republicano Jeff Flake.

O homem que nunca se curvou aos EUA


Fidel Castro, depois de exercer o poder em Cuba durante quase cinco décadas, renuncia ao poder e passa à história como o homem da incansável resistência aos Estados Unidos, seu perseverante inimigo ideológico. Durante os 49 anos que permaneceu no poder, Fidel enfrentou dez presidentes americanos – incluindo um embargo econômico e uma invasão apoiada pelos serviços secretos dos EUA – e sobreviveu à queda do bloco socialista.
Considerado no início de seu regime um símbolo das esperanças do Terceiro Mundo e dos movimentos de libertação, o ex-guerrilheiro de Sierra Maestra foi se transformando, com o passar dos anos, em um governante contrário a qualquer liberalização política, acusado de autoritarismo e tachado de ditador.
Nascido em 13 de agosto de 1926 em Birán, no leste de Cuba, foi o terceiro de uma família de sete filhos. Seu pai, o espanhol Angel Castro, combateu no Exército colonial da Espanha antes de instalar-se e chegar a dono de terras na ilha, a mãe, Lina Ruz, era uma cubana humilde, natural de Pinar del Río, no oeste do país.
Após estudar em colégios jesuítas, Fidel se matriculou na Universidade de Havana em 1945 e saiu formado advogado cinco anos mais tarde. No ensino superior, adquiriu consciência política, primeiro na Federação de Estudantes Universitários (FEU) e depois como integrante do Partido do Povo Cubano – também chamado ortodoxo –, no qual participou nas campanhas contra a corrupção.

APRENDIZADO

Ainda como estudante, Fidel participou em 1947 da frustrada expedição que tinha como objetivo derrubar o ditador dominicano Rafael Leónidas Trujillo. Um ano mais tarde, quando estava em Bogotá para um congresso estudantil, foi surpreendido pelo assassinato do líder progressista colombiano Jorge Eliécer Gaitán e integrou os violentos protestos posteriores, que ficaram conhecidos como Bogotazo.
Fidel casou-se com Mirtha Díaz-Balart, mãe de Fidelito, único filho do ditador conhecido publicamente.
O golpe de Estado protagonizado em Cuba, no dia 10 de março de 1952, pelo general Fulgencio Batista levou o jovem advogado a optar pela luta armada como via para derrubar o ditador. Em 26 de julho de 1953, depois de 16 meses de planejamento clandestino, Fidel liderou um grupo de 165 homens que atacaram o quartel de Moncada, segunda base militar mais importante de Cuba. A operação fracassou e deixou um saldo de quase 70 guerrilheiros mortos e 15 detidos, mas marcou o ponto de partida da Revolução Cubana.
Fidel e seu irmão Raúl foram condenados a 15 anos de prisão em 16 de outubro de 1953, em um julgamento no qual o líder rebelde assumiu a própria defesa e, durante um discurso de cinco horas, pronunciou a célebre frase: “A história me absolverá”. Em 15 de maio de 1955, Fidel Castro e seus companheiros foram anistiados.
Depois de fundar o Movimento 26 de Julho partiu para o exílio no México, onde começou a preparar uma nova ação armada contra a ditadura de Batista. No dia 2 de dezembro de 1956, a bordo do iate Granma e à frente de 81 homens, desembarcou em Alegria de Pio, na região oriental da ilha, e sofreu um duro revés: o pequeno corpo expedicionário foi dizimado pelo Exército assim que tocou em terra, mas 16 combatentes conseguiram sobreviver, incluindo Fidel, o irmão Raúl e o argentino Ernesto Che Guevara, e se refugiaram em Sierra Maestra. Protegida pela selva da cadeia montanhosa, a guerrilha começou a atacar as tropas de Batista e a recrutar novos membros entre os camponeses e jovens universitários.
Quase dois anos depois, 10 mil soldados de Batista se voltaram contra a guerrilha de Fidel, na fracassada “ofensiva de verão”. Fortalecidos pela vitória, os rebeldes lançaram a batalha final. Contra todos os prognósticos e depois de 25 meses de combates, os guerrilheiros “barbudos” comandados por Fidel levaram Fulgencio Batista a fugir de Cuba no dia 1º de janeiro de 1959.
Sete dias mais tarde, o comandante-em-chefe fez sua entrada triunfal em Havana. Após entregar a Presidência da República a Osvaldo Dorticós, Fidel foi designado primeiro-ministro do novo governo em fevereiro de 1959. Permaneceu neste cargo até 1976, quando foi nomeado presidente ao ser eleito para a chefia do Conselho de Estado, cargo instituído por uma nova Constituição, posto em que concentrou as funções de chefe de Estado e de Governo.
Em 1959 uma das primeiras medidas do governo foi a criação dos Tribunais Revolucionários para julgar os procuradores e repressores do regime de Batista, sobretudo os vinculados a mortes e torturas. De 21 de janeiro a julho de 1959 – quando os tribunais foram suspensos por lei – centenas de pessoas foram julgadas, condenadas à morte e fuziladas. Ao recordar a época, Fidel disse em 1975: “Este ato elementar de justiça, que era exigido unanimemente por nosso povo, deu lugar a uma feroz campanha da imprensa imperialista contra a revolução”.
De 1959 a 1962 foi registrada a primeira onda migratória, principalmente para os Estados Unidos. No total, 265 mil pessoas deixaram a ilha, especialmente as vinculadas ao regime deposto ou afetadas pelas “leis revolucionárias”. Esta onda migratória marcou política e ideologicamente o exílio cubano, baseado majoritariamente na cidade de Miami, Flórida. Segundo o Centro de Estudos Migratórios da Universidade de Havana, de 1959 a 1999 emigraram de Cuba, por todos os meios e para distintos países, 1.079.000 pessoas.
Outra ação adotada logo após tomar o poder foi a reforma agrária, que expropriou e nacionalizou os latifúndios, pertencentes em 90% a interesses americanos. Em seguida aplicou uma reforma urbana que passou para as mãos do Estado as grandes empresas – também majoritariamente americanas – que controlavam a economia da ilha.
As medidas radicais provocaram a ruptura diplomática com os Estados Unidos em 3 de janeiro de 1961. Sete meses depois, Cuba optou por vincular-se à União Soviética, em uma aliança que teve uma influência determinante por mais de três décadas.
Em abril de 1961, 1.400 anticastristas apoiados pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) desembarcaram na Baía dos Porcos, a sudeste de Havana, e Fidel comandou pessoalmente o contra-ataque, depois de proclamar a revolução “socialista” em um ato público. A expedição anti-revolucionária foi derrotada no campo de batalha, mas as ações de sabotagem e de operações guerrilheiras contra o regime se prolongaram por vários anos.
Em 1962, o regime revolucionário atravessou um período crítico. Os EUA conseguiram a suspensão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) e deu início ao embargo econômico, comercial e financeiro da ilha.
Porém, o pior ainda estava para chegar: em outubro, na chamada “crise dos mísseis”, o mundo esteve à beira do cataclismo nuclear. Os Estados Unidos decretaram um bloqueio aeronaval a Cuba e exigiram a destruição das rampas de lançamentos de foguetes com ogivas nucleares que a União Soviética havia instalado na ilha. Finalmente, o governo soviético cedeu aos americanos, que por sua parte se comprometeram a não invadir Cuba.
Em 1965, Fidel foi nomeado primeiro secretário do novo Partido Comunista de Cuba (PCC), que substituiu o Partido Unido da Revolução Socialista (PURS), com uma importante transição ao marxismo-leninismo. Sete anos mais tarde, Cuba tornou-se membro do Conselho de Ajuda Mútua Econômica (Came), que reunia os países socialistas do mundo. A Revolução Cubana começou a “exportar” ideais e a promover a formação de grupos guerrilheiros no Terceiro Mundo, em especial na América Latina.

REVOLUÇÃO EXPORTADA

Uma destas operações, em 9 de outubro de 1967, resultou na morte de Ernesto Che Guevara, guerrilheiro argentino que havia participado na revolução cubana desde o início. Depois de abandonar todos o seus cargos públicos para continuar lutando na África, Guevara criou uma guerrilha na Bolívia, onde foi capturado e morto por um soldado boliviano que obedecia ordens superiores.
No final de 1975, Fidel Castro enviou abertamente tropas militares para apoiar a nascente república de Angola. Em 1977 fez o mesmo com o deslocamento de soldados cubanos à Etiópia.
Presidente do Movimento de Países Não Alinhados (NOAL) de 1979 a 1983, Fidel se tornou um dos líderes mais populares do Terceiro Mundo, com discursos contínuos contra o imperialismo, o colonialismo, a exploração e o racismo. Também comandou uma grande ofensiva contra o pagamento da dívida externa.
Fidel voltaria a assumir pela segunda vez a presidência do NOAL em setembro de 2006, mas convalescia da cirurgia intestinal a que havia sido submetido em julho e nem sequer compareceu à reunião de cúpula do movimento, em Havana.
A imagem de Fidel no cenário internacional começou a ser a do ditador mão-de-ferro com o chamado “êxodo de Mariel” de 1980, quando 125 mil cubanos fugiram do país para os Estados Unidos. Agravou-se ainda mais em julho de 1989 com a execução do “herói de Angola”, general Arnaldo Ochoa, e outros altos oficiais acusados de corrupção.
A desintegração da União Soviética (1990-91) e o fim do socialismo no leste da Europa representaram outro duro teste para o Comandante, pois seu regime ficou privado da ajuda econômica fornecida pelos soviéticos e seus satélites durante 30 anos.
O país se afundou em uma crise econômica e social sem precedentes e o mundo passou a apostar que vítima seguinte do fim do socialismo seria Fidel. No entanto, ele conseguiu manter a liderança e seguir em frente com seus ideais.
Sua invencibilidade esteve ligada ao controle permanente da sociedade como um todo, principalmente das organizações de base de seu regime, como os Comitês de Defesa da Revolução (CDR), instalados em todos os bairros para vigiar as atividades “contra-revolucionárias”, e o Exército.
Nem mesmo a “crise dos balseiros”, que levou 35 mil cubanos ao mar em embarcações precárias, no ano de 1994, abalou sua popularidade na ilha.
O líder cubano aceitou fazer algumas concessões ao capitalismo em 1993 para evitar o colapso do regime, asfixiado pela penúria material.
Ao mesmo tempo em que declarou fidelidade aos princípios marxista-leninistas, Fidel foi obrigado a fazer tais concessões. A retomada parcial da economia privada, a busca crescente por investimentos estrangeiros, a reorientação das exportações e a autorização para a entrada de dólares no país foram medidas que, aos poucos, reativaram os principais setores da atividade econômica cubana.
Animado com os sinais de recuperação e com a inserção progressiva de Cuba na nova ordem mundial, no fim da Guerra Fria, o chefe de Estado cubano recusou os pedidos internacionais de democratização ou abertura política.
Dez anos depois, Fidel iniciou um processo de nova centralização: proibiu a circulação do dólar a partir de 8 de novembro de 2004 e impediu alguns dos negócios antes permitidos à iniciativa privada.
No entanto, o regime ganhou novo impulso com a aliança política e econômica de dois novos sócios: a China e sobretudo a Venezuela de Hugo Chávez.
Reconfortado pelos espasmos de recuperação e pela reinserção progressiva de Cuba na nova ordem mundial surgida após o fim da Guerra Fria, Fidel manteve intacto o sistema de partido único e não cedeu um milímetro de espaço à oposição interna, composta por pequenos grupos de dissidentes e defensores dos direitos humanos, a quem chamava “mercenários” a serviço dos Estados Unidos.
Durante quase meio século de governo, Fidel Castro exerceu uma liderança e poder unipessoal sobre um país de pouco mais de 11 milhões de habitantes.
Agora se abre a grande interrogação do que pode acontecer neste período de transição ou sucessão que os analistas chamam de “pós-castrismo”.
Seu afilhado político de longa data, o irmão Raúl, ministro das Forças Armadas Revolucionárias (FAR) e segundo secretário do Partido Comunista de Cuba (PCC), apenas poderá, a seu ver, assegurar a continuidade do castrismo.
“Futuro só pertence aos cubanos
O presidente Lula defendeu que o povo cubano defina o seu próprio regime político após o anúncio da renúncia de Fidel Castro. “Se cada um tomar conta do seu nariz já está bom demais. O que complica é quando a gente começa a dar palpite nas coisas dos outros. Acho que os cubanos têm maturidade para resolver todos os seus problemas sem precisar da ingerência brasileira ou americana”, disse Lula.
A iniciativa de Fidel de renunciar ao poder foi elogiada pelo presidente, que destacou uma transição sem conflitos na ilha. “O grande mito continua. Fidel é o único mito vivo na história da humanidade. Acho que ele construiu isso à custa de muita competência, de muito caráter, força de vontade, muita divergência e muita polêmica”, disse.
Lula afirmou que já havia percebido na visita a Cuba, no início do ano, que Fidel cogitava a renúncia: “Eu tive a impressão, sentia que ele estava analisando a situação política e querendo criar as condições para que isso pudesse acontecer”. As declarações de Lula foram feitas em conversa com jornalistas na manhã de ontem, durante visita ao gasoduto Cabiúnas-Vitória.
Lula elogiou o irmão de Fidel, Raúl Castro, que exerce o comando do país desde julho de 2006. Lula afirmou que já o havia convidado para vir ao Brasil e que pretende reiterar o convite em breve.
Lula destacou o relacionamento próximo com Fidel Castro e disse que sua geração se transformou em uma amante da Revolução Cubana. Lula lembrou que, após perder as eleições presidenciais em 1989 para Fernando Collor, recebeu uma visita do líder cubano. “Quando ele veio para a posse de Collor, ele participou do ato oficial e foi a São Bernardo para almoçar comigo numa deferência que para mim é inesquecível.”
O presidente afirmou que espera continuar mantendo contato com Fidel porque ele ainda vai viver muito tempo. Disse que há uma missão de Cuba fazendo treinamento com a Petrobras e que em breve deverão ser assinados acordos entre os países nas áreas de saúde, construção de estradas e recuperação da estrutura hoteleira.
Outros integrantes da cúpula do governo brasileiro aderiram ao coro dos elogios ao cubano. O ministro da Justiça, Tarso Genro, disse que Fidel Castro “é uma figura mítica da nossa época, assim como foi Nelson Mandela, que soube renovar a revolução sul-africana no momento adequado”.
O vice-presidente da República, José Alencar, disse que a renúncia de Fidel Castro pode abrir oportunidades para que o regime democrático prevaleça no país. Ele disse ainda que está torcendo para que o cubano recupere sua saúde. “Nós desejamos que o comandante Fidel Castro seja feliz no seu tratamento, que recupere sua saúde. Sua saída é o fim de um tempo, e isso pode abrir realmente oportunidades para que o regime democrático prevaleça naquele país”, disse Alencar.
O ex-ministro-chefe da casa Civil José Dirceu afirmou que leu emocionado a notícia de que Fidel Castro renunciara ao cargo de presidente do Conselho de Estado e comandante-em-chefe de Cuba. “Minha gratidão a Fidel e ao povo de Cuba não tem limites”, disse.




E agora, Cuba?

A saída de Fidel joga o futuro da ilha em um mar de incertezas. Para a maioria dos especialistas, haverá mudanças no regime, mas de forma gradual.
Nem uma bola de cristal seria capaz de antever com precisão o que acontecerá com Cuba agora que o seu líder supremo deixou o poder. Os caminhos possíveis para o futuro do país passam necessariamente por pelo menos três cenários, apresentados por analistas ouvidos pelo Jornal do Commercio: a continuidade do pulso forte da Revolução Cubana, sob o protagonismo de Raúl Castro, mas com uma flexibilização econômica, nos moldes chineses, a abertura escancarada ao que os Estados Unidos chamam de “eleições livres e democráticas”, ou o contra-ataque dos dissidentes anticastristas da Flórida, com o estabelecimento de uma guerra fratricida entre os cubanos.
A hipótese mais provável, contudo, é que nada mude, pelo menos a curto prazo. “Não se muda uma política de 50 anos da noite para o dia”, avalia o professor americano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Marc Hoffnagel, especialista em história da América Latina. “O que pode acontecer é algo como aconteceu na China após a morte de Mao Tse Tung: uma certa abertura, mas com o centro político nas mãos do Partido Comunista”, prossegue Hoffnagel.
O economista Frederico Katz, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), diz que a renúncia de Fidel poderá trazer mudanças na condução do país. Mas daí dizer quando, como e o quê já é outra coisa: “Vai depender do que os EUA poderão fazer. É bom lembrar que os EUA não estão em um bom momento, não têm mais aquele poder unilateral de alguns anos atrás”.
O modelo chinês parece ser um dos mais atrativos. Sob a liderança de Deng Xiaoping, o gigante asiático criou, entre os anos 70 e 80, as zonas econômicas especiais, clarões capitalistas espalhados principalmente por cidades do litoral, enquanto no interior do país o socialismo continuava. “Quando Mao Tse Tung saiu de cena, abriu caminho para o surgimento de novas lideranças, que, em menos de dez anos, colocaram a China em outro rumo. A mudança no contexto mundial abre a possibilidade para que isso aconteça em Cuba de maneira mais rápida: a manutenção do poder político do PC aliada à gradativa abertura econômica. Só que Cuba é diferente da China. Já há uma zona econômica onde o capitalismo corre solto, que é o turismo”, explica o sociólogo Wagner Romão, coordenador do curso de relações internacionais da Faculdade Santa Marcelina, de São Paulo. “O embargo econômico dos EUA não chega ao turismo cubano, setor mais importante da economia da ilha”, complementa Romão.
Se o exemplo chinês pode servir de base para uma adaptação, a posição dos eternos vizinhos incômodos de Cuba é, essencialmente, o fiel da balança do que poderá acontecer. A pouco mais de cem quilômetros da costa cubana, a reação dos Estados Unidos à saída de Fidel e à conseqüente sucessão é o que mais poderá – ou não – determinar estas mudanças.
Uma coisa é certa: uma nova invasão, nos moldes do fracasso da Baía dos Porcos, em 1961, está descartada. “Seria um suicídio internacional. Embora não falte vontade, é muito improvável que aconteça”, vaticina Wagner Romão. O momento delicado por que passam os EUA também interfere. “Os americanos vivem um ano de eleições, dificuldades econômicas e políticas. Se o eleito for um republicano, o embargo econômico não mudará. Se for um democrata, também não mudará muito, mas pode haver o início de um processo diplomático de distensão”, arrisca o sociólogo paulista.
A abertura econômica e a transição política podem causar, na opinião do cientista político e professor da UFPE Michel Zaidan, um efeito inverso à tranqüilidade esperada em Cuba na era pós-Fidel. Zaidan diz que Raúl Castro, provável sucessor de Fidel, não tem o carisma nem o apoio internacional que o irmão cinco anos mais velho tem há meia década. “Raúl não tem a estatura de Fidel. É um chefe sanguinário, marcado pela brutalidade e violência contra os dissidentes”, afirma.
O problema, na avaliação de Zaidan, é que a abertura pode trazer para Cuba um efeito que a Rússia e muitos países do Leste Europeu conhecem muito bem: “A partir da flexibilização econômica, a população local sente o efeito de demonstração, ou seja: tem acesso às informações que os turistas trazem e querem imitá-los, consumindo, e se sente frustrada porque não pode ter o que os estrangeiros têm”. Aconteceria o que o cientista político chama de “demanda reprimida”. Por informação, por bens de consumo, por liberdade. “Ninguém vive só de ideologia, de filosofia. A depender do tratamento que será dado a essa demanda reprimida, pode acontecer o pior, se isso for tratado militarmente”, prevê Michel Zaidan.
Enquanto os americanos pedem a libertação dos presos políticos, do outro lado – o dos aliados de Fidel – o pedido é outro: o fim do bloqueio econômico impetrado pelos EUA ainda na década de 60. O prefeito do Recife, João Paulo (PT), puxa o cordão dos insatisfeitos: “Acredito que uma mudança seria da maior importância: o fim do bloqueio econômico americano à ilha, que já dura quase 50 anos”. Wagner Romão lembra que há países na América que já pedem isso – e faz tempo: “México, Venezuela e Brasil insistem para que o embargo caia e que Cuba volte à Organização dos Estados Americanos, de onde foi expulsa nos anos 60”.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

KOSOVO, O NOVO PAÍS


A independência de Kosovo se baseia mais na força de quem a apóia do que nos códigos




Há casos em que a política tem o "direito" de atuar contra o direito? Kosovo é um deles? Direito e sanção são irmãos siameses. Os jurisconsultos da antiga Roma já tinham o conceito muito claro, não duvidavam de que um direito, sem força suficiente para aplicá-lo e protegê-lo, não pode ir muito longe.


Naturalmente, o conceito continua vigente e aparece com freqüência em sua crua dureza no tabuleiro internacional, onde a aplicação do direito está totalmente condicionada a que seja defendido por algumas potências. A legalidade só pode se afirmar onde sua irmã sanção -a força incontestável- esteja disposta a acompanhá-la. Assim, os Estados nascem ou não dependendo de se obter uma massa crítica de poder a favor ou não. O direito internacional pode acompanhar. Ou não.


A recente declaração de independência de Kosovo, e seu rápido reconhecimento por parte dos EUA e das principais potências européias, põe outra vez sobre a mesa, segundo muitos juristas e analistas, o cadáver da legalidade internacional atropelada pela vontade dos países com músculo e que não temem as sanções -porque eles mesmos são os únicos em grau de ameaçar com uma sanção. Mas o caso de Kosovo é verdadeiramente uma violação? E, se assim fosse, é ruim em si que a política atue contra o direito? Ou há casos nos quais, diante da impotência do ordenamento, é moralmente legítimo violar o direito?


Kosovo é, em muitos aspectos, um caso de livro. "Na minha opinião, trata-se do péssimo epílogo de um assunto -como o balcânico- pessimamente administrado pelas potências ocidentais", responde Giovanni Sartori, cientista político e professor emérito da Universidade Columbia em Nova York. "Podemos começar dizendo que a base legal da independência é no mínimo frágil. Mas não me preocupa tanto que a política atropele o direito: sempre foi assim. A força do direito nas relações internacionais é próxima de nula. Também não me preocupa a falta de coerência dos mandatários: o que me preocupa é a falta de inteligência", diz Sartori, prêmio Príncipe de Astúrias.


Enquanto ele falava de Roma, em Belgrado ardia a embaixada americana e se congelava a relação com Bruxelas. Na véspera, Felipe González havia assumido publicamente uma posição parecida: o caso Kosovo é uma "semente terrível e ilegal". O sentido é claro: "cada minoria que seja maioria em um pequeno pedaço do território vai querer ser independente da maioria".


Anthony Clark Arend, diretor do Instituto de Direito Internacional da Universidade de Georgetown, em Washington, também considera que a independência de Kosovo não está amparada pelo direito. "Não creio que no caso kosovar se possa justificar a secessão com base no direito de autodeterminação dos povos", conclui, depois de uma elaborada argumentação jurídica. "Inclusive aceitando a idéia de que são um povo, em seu caso creio que a autodeterminação legítima é interna, só pode se traduzir em uma justa representação e certo grau de autonomia dentro do Estado sérvio", que atualmente é democrático e não-violento. "Mais além dos princípios", prossegue Arend, "a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU é muito clara quando diz que a solução política para a crise de Kosovo deve ser buscada respeitando os princípios de soberania e integridade territorial. Então, sinceramente, me parece que neste caso os argumentos jurídicos estão em segundo plano." Mais uma vez.


Mas isso é ruim em si? Ou os argumentos não-jurídicos, por exemplo morais, podem autorizar a política a ir além ou até contra o direito? "Política e direito estão muitas vezes em antítese no cenário internacional", reflete Ignacio Molina, principal pesquisador de Europa no Real Instituto Elcano de estudos estratégicos. "Mas eu rejeito a equação política = mal / direito = bem. É plana demais, é preciso matizá-la. O direito internacional é, por natureza, um sistema limitado, imperfeito. A política pode e deve chegar aonde esse direito não chega." "A supremacia da política pode causar atropelos", prossegue, "porque não tem como fundamento necessário a justiça, mas também pode consertar situações, como ocorreu em 1999, quando a Otan interveio em ajuda dos kosovares golpeados sem o amparo de uma resolução do Conselho de Segurança. Estou de acordo que em Kosovo se agiu contra o direito, mas em vez de levantar só um grito ao céu creio que é preciso analisar a substância do ato além de sua legalidade." Sartori recorre ao mais cru realismo: "No fundo, o que mais importa é a inteligência do ato". Em todo caso, o direito, mesmo que atropelado, nunca morre de tudo. No caso de Kosovo pode ressuscitar em forma de precedente. "Por mais que se saliente que é um caso único, não deixa de ser um caso", aponta Arend.


Muitos Estados nasceram nos últimos 20 anos. A dissolução da URSS em 1991 deu vida a cerca de 15 novos países. Mas o desmembramento foi praticamente consensual, e além disso a Constituição da União Soviética previa a possibilidade de separação das repúblicas federadas. A divisão da Checoslováquia também foi consensual. A iugoslava não foi, mas os territórios que foram se separando eram repúblicas federadas. Kosovo, em troca, era -é?- uma província da Sérvia. Isso faz dele um precedente explosivo -ou semente terrível.


"É indiscutível que, juridicamente, Kosovo era uma província. Mas por que o era? Porque os kosovares eram cidadãos de segunda na Iugoslávia", raciocina Molina, do Instituto Elcano. "Por coesão étnica, religiosa, cultural e territorial, tinham provavelmente tanto direito ou mais que as outras de ser uma república. Mas, por uma afronta política, não lhes outorgaram o estatuto e inclusive Milosevic retirou a autonomia limitada que Kosovo tinha nos anos 1980. Por isso hoje são juridicamente um caso diferente dos demais. Eu não desprezo o valor do direito da antiga Iugoslávia ou da antiga URSS, mas também não posso magnificá-lo.


"Mais uma vez a dicotomia política-direito. A distância hierárquica estabelecida na ex-URSS entre repúblicas e províncias também desembocou em um abismo cheio de conflitos e mortes. Enquanto as repúblicas se separaram sem violência, províncias e outras entidades territoriais ficaram como estavam, às vezes nadando em sangue. Ali estão as tensões da Chechênia, Abcázia, Ossétia do Sul, Nagorno-Karabak, Transdniester. Mas não só é discutível o direito dos Estados totalitários. Alguns juristas observam que o direito internacional tampouco é uma ferramenta perfeitamente eficaz e imparcial em questões de independência, porque é basicamente um direito de Estados soberanos, aplicado fundamentalmente em uma assembléia de Estados soberanos. Não é estranho que seus princípios sejam restritivos em matéria de secessões. Isso não impede que possam saltar indignados quando convém, observam os cínicos. "É interessante notar como tanto no caso de Kosovo como no do Iraque as potências políticas tentaram revestir de uma aura de legalidade as evidentes violações cometidas", comenta Antonio Remiro, catedrático de direito internacional na Universidade Autônoma de Madri. "As declarações da UE na última segunda-feira são juridicamente grotescas, com suas referências ao respeito de princípios na realidade violados ativa e passivamente. Mas nota-se a vontade de se proteger." A política nua talvez seja uma visão forte demais para os estômagos da opinião pública.


"A violação não sai totalmente grátis, não só em termos midiáticos como também jurídicos", prossegue Remiro. "Não o vão fazer, mas 'sic stantibus rebus' (do jeito que estão as coisas), uma ação militar sérvia em Kosovo não seria uma agressão ilegítima. Como não o é a ação russa na Chechênia. Ali o que ocorre é que houve tremendos crimes de guerra, mas a ação militar em si não é ilegítima.


"O duplo critério da política naturalmente gera raiva, tensões. "É difícil aceitar que Kosovo possa e, por exemplo, o Saara Ocidental não, quando este tem uma base legal praticamente impecável para ser independente, muito mais sólida que a de Kosovo", reflete Molina. Difícil de aceitar, mas é assim: os Estados nascem, ou não, dependendo de quem o quer. O direito, se puder, que acompanhe.


Assim nasceu a Namíbia em 1990, separando-se da África do Sul. A Eritréia conseguiu seu reconhecimento em 1993. Antes, em 1971, Bangladesh proclamou sua independência do Paquistão, e também acabou sendo reconhecido. Israel surgiu, sobre a base moral do Holocausto sofrido, depois da Segunda Guerra Mundial em uma terra em que seu povo não residia havia quase 20 séculos. Em troca, Taiwan fica em seu limbo: a China é um contrapeso enorme. Outros atestam esse limbo de territórios independentes de fato: a república da Somalilândia, a república turca de Chipre Norte, só reconhecida pela Turquia.


Mas Kosovo ameaça "abrir a caixa de Pandora", como salientou o presidente russo, Vladimir Putin. Por exemplo, segundo um argumento que se repete muito nestes dias, se a minoria kosovar pode se separar da Sérvia, por que não pode também a minoria sérvia de Kosovo? Em quantos recantos do mundo existem as mesmas condições? Ninguém deixa de notar a relevância que o caso tem nos assuntos internos espanhóis.


"A partida em Kosovo acabou política 1, direito 0. O problema é que tem todo o jeito de ser uma partida que se sabe como começou, mas não como acabará. Poderíamos nos encontrar em breve com política 3, direito 0. Ou mais", argumenta Romualdo Bermejo, professor de direito internacional na Universidade de León e autor de um estudo sobre o caso Kosovo. Sim, os kosovares sofreram violências e humilhações, o que os diferencia de muitos outros casos. Mas quantos povos sofreram violências no passado? Como exercer a interpretação?


Bermejo considera, por outro lado, que no estado atual das coisas a missão militar da Otan em Kosovo, a Kfor, é uma força de ocupação. A Aliança e seus Estados membros não o vêem assim, porém, ao considerar a resolução 1244 da ONU plenamente vigente. Incluindo a Espanha. Aqui também, qual é a interpretação aplicável? Naturalmente, a dos que tiverem a força para aplicá-la. Talvez, como diz Sartori, o único que cabe esperar é que pelo menos seja inteligente, a interpretação.





Um sonho que custou muito sangue









O Kosovo independente começou a nascer com sofrimento em 1999, entre a brutal repressão das tropas de Milosevic e as bombas da Otan Não cabia um alfinete no bulevar da Madre Teresa em Pristina. Havia mais bandeiras que pessoas, pois eram muitas as que levavam duas, três ou quatro: na cabeça, no ombro ou ao vento. Um mar de tecidos vermelhos com a águia bicéfala negra no centro -o símbolo nacional de todos os albaneses desde o século 15- dominava a paisagem em uma cidade gélida, submetida a temperaturas de 11 graus abaixo de zero. Grupos de jovens com seus piercings abriam caminho portando uma enorme, com listras e estrelas, aos gritos de "USA!". Outras bandeiras americanas haviam incorporado retratos de Marilyn Monroe e Bill Clinton. Havia poucas da UE, que vai pagar pela independência e o sustento do novo Estado do tamanho de Astúrias, mas sim cartazes com "Obrigado Europa", "Obrigado França" ou "Viva Itália". O Kosovo que se tornou independente no domingo começou a nascer com sofrimento em 1999, entre a brutal repressão das tropas de Slobodan Milosevic, que expulsaram de fuzil na mão a metade da população albanesa -quase um milhão de pessoas-, e as bombas da Otan, que veio em seu socorro. Terminada aquela guerra, a última de quatro balcânicas, a Sérvia se retirou de Kosovo com suas tropas e seus símbolos, deixando para trás um rastro de fossas comuns e destruição. O território que considera o berço de seu Estado medieval ficou nas mãos da ONU. Na realidade, tudo começou muito antes, em 1989, quando Milosevic trocou o comunismo pelo nacionalismo oportunista e anulou a autonomia. O que se viveu em Kosovo é o final de uma ocupação e o começo de um caminho incerto e perigoso. Entregue à Sérvia em 1913, foi tratado por todas as autoridades que se sucederam em Belgrado como uma colônia, o lugar de onde se extraíam os minerais e para o qual se enviavam os funcionários medíocres. A Sérvia nunca teve um plano para governar Kosovo -além da limpeza étnica-, bastava-lhe agitar e governar seus mitos da batalha do Campo dos Melros. No abarrotado e gelado bulevar Madre Teresa, onde se realizaram as manifestações contra Milosevic, ainda estão vivas as recordações e as lágrimas brotam facilmente, como as de Nermin, 47 anos, que permaneceu em Pristina durante a guerra. "Todos os dias tinha medo de sair à rua e todas as noites tinha medo de que a polícia sérvia derrubasse a porta de casa. É um dia muito feliz." Levava pela mão sua filha de 11 anos, para que possa lembrar um momento que mudará sua vida. Enquanto os deputados e o governo seguiam ao pé da letra o roteiro institucional preparado por eles mesmos com a ajuda da comunidade internacional, as pessoas se agitavam em torno de um palco vazio povoado por meia dúzia de microfones. Não haviam sido instalados telões para acompanhar o desenvolvimento do histórico debate parlamentar. "Foi proibido pela Unmik (missão da ONU em Kosovo, que agora deixa seu lugar para a UE)," exclamou irritada uma jovem. São as últimas oportunidades para culpar a ONU. Os bares se encheram de curiosos que queriam saber se a independência chegava na hora. Quando o presidente do Parlamento leu a proclamação para submetê-la a votação, milhares de pessoas levantaram suas mãos. Era o voto maciço e emocionado de uma nação, a mais jovem das 193 que existem no mundo. Os rostos das pessoas ficaram iluminados. Riam nervosamente, choravam e abraçavam os desconhecidos como se fossem parentes. Emoções, muitas; palavras, poucas. O grande escritor albanês Ismail Kadaré explica bem isso: "Às vezes a língua não está preparada para descrever momentos tão extraordinários".




A ponte que divide dois mundos









O rio Ibar mantém separados os sérvios dos albaneses-kosovares em Mitrovica Mitrovica tem a cor das cidades melancólicas: ruas cinzentas, lojas cinzentas, roupas cinzentas feitas do outro lado do muro de Berlim e pessoas cinzentas de olhar cansado. Parece uma pequena Sérvia tristonha debruçada sobre o Ibar, um rio-fronteira entre dois mundos -um sérvio, ao norte, onde se paga em dinares, se ganha o salário de Belgrado e se vota no líder do Partido Radical, Tomislav Nikolic, e outro albanês, no sul, cheio de cor e alegria, que já começou a comemorar a independência Ninguém sabe o que vai acontecer, mas a maioria prevê problemas, tensões e talvez confrontos dentro de dias ou semanas. A ponte que une as duas Mitrovicas é na realidade um muro, outra linha verde pintada com o medo do outro. E no norte há muito medo do sul. "Não importa o que façam esses merdas de albaneses", espeta uma mulher que dirige uma loja na avenida principal. É a reação de desprezo que se repete, embora com diferentes matizes de educação. No norte estão convencidos de que depois da independência os albaneses atravessarão a ponte e tentarão expulsá-los de fuzil na mão. "Se isso acontecesse haveria um banho de sangue", adverte Ivana, uma mulher que atravessa para o sul todos os dias por motivos de trabalho e que deveria conhecer em primeira mão a realidade dos dois mundos. Mas nesse norte a propaganda de Belgrado é uma nuvem de poluição que nunca se afasta. "A convivência é impossível. Jamais haverá convivência depois do que nos fizeram", acrescenta. A força da Otan em Kosovo (Kfor), com mais de 16 mil soldados, é mais visível que nunca. Patrulhas francesas, italianas e americanas se movem pelos três municípios ao norte do rio Ibar, onde vivem cerca de 40 mil sérvios. Agora, com o apoio do Kosovo que se despede, a nova batalha é conseguir a divisão desses municípios e de Mitrovica norte para uni-los à Sérvia. A ponte, transformada no último reduto, em um Álamo, em um projeto de uma nova derrota porque ninguém, nem o novo Estado nem seus patrocinadores internacionais, vai consentir. "Todos aprenderam as lições dos incidentes de 2004 (começaram perto da ponte, quando três albaneses morreram afogados ao cruzar o rio). Creio que todos estamos interessados em evitar as provocações. De nossa parte, tomamos as medidas para evitá-las", afirma Bajram Rexhepi, prefeito de Mitrovica sul, ex-primeiro-ministro depois da guerra e um dos dirigentes da guerrilha mais respeitados.No sul de Mitrovica não há dramaticidade nem medo, nem ódio aparentemente. Só milhares de bandeiras albanesas e milhares de pessoas comemorando por antecipação o novo país. Arber passeia junto com seus amigos a cerca de 500 m da ponte. "Quando perceberem, vão começar a nos ver de outra forma", diz.As ruas de Mitrovica norte parecem mais vazias que de costume. Ivana afirma que muitos foram passar alguns dias em Belgrado. Em vez de civis, vêem-se outros que apesar de suas roupas de disfarce não podem ocultar sua condição de membros da MUP, a antiga polícia política de Slobodan Milosevic. Segundo Ivana, sua missão é controlar os radicais que possa haver entre os sérvios. Outros afirmam que eles são os elementos radicais à espera das ordens do governo sérvio presidido por Vojislav Kostunica, na teoria um nacionalista moderado. A Igreja Ortodoxa não desempenha um papel pacificador, mas sim o de piromaníaco na primeira linha de combate. "Esperamos algo horrível", disse no sábado o bispo Artemije para seus assustados fiéis em Mitrovica norte. "Nossa mensagem é para que vocês fiquem em casa e perto dos mosteiros, apesar do que Deus está permitindo que nossos inimigos façam."






As principais potências européias e os Estados Unidos anunciaram na segunda-feira o reconhecimento à independência de Kosovo, enquanto os sérvios reagiram com indignação e alguns governos alertaram que a secessão pode criar um precedente perigoso.
presidente da Sérvia, Boris Tadic, disse ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) que essa instância deveria impedir a independência kosovar, ou do contrário estaria dizendo ao mundo que nenhum país tem garantias sobre sua soberania e suas fronteiras.O primeiro-ministro sérvio, Vojislav Kostunica, ordenou a retirada imediata do embaixador do país de Washington e disse que ocorrerá o mesmo nas outras capitais que reconhecerem o novo país."Os Estados Unidos reconheceram hoje formalmente Kosovo como um Estado soberano e independente. Congratulamos o povo de Kosovo nesta ocasião histórica", disse a secretária norte-americana de Estado, Condoleezza Rice, numa declaração há muito tempo sonhada pelos 2 milhões de albaneses de Kosovo."À luz dos conflitos na década de 1990, a independência é a única opção viável para promover a estabilidade na região", completou ela.Rice se referia à brutal repressão promovida pelo regime de Slobodan Milosevic à população albanesa da província, que terminou com o bombardeio da Otan contra a Sérvia, em 1999. Desde então, Kosovo estava sob administração internacional.O reconhecimento foi um alívio para os líderes de Kosovo, que aguardavam com ansiedade a bênção ocidental à sua secessão, mas marcou um dia triste para a Sérvia, que havia prometido nunca ceder esse território histórico, considerado por muitos o berço da pátria sérvia.Em Belgrado, houve uma passeata pacífica contra a independência kosovar. A tropa de choque da polícia estava em alerta desde os ataques da noite de domingo contra embaixadas ocidentais."Este país está ficando cada vez menor", lamentou a estudante Jelena.Algumas lojas de albaneses tiveram vitrines destruídas, mas não houve tumultos generalizados. "Estamos fazendo a passeata para mostrar que somos contra isso.""Apelo aos cidadãos que parem todos os protestos que levaram à violência e ao tumulto, porque essa não é a forma de ajudar a Sérvia ou a defesa de Kosovo", disse Kostunica, convocando uma grande manifestação para quinta-feira.
DISCORDÂNCIAS
Em todo o mundo, países com minorias turbulentas reagiram com dubiedade ou franca oposição à declaração unilateral de independência por parte de Kosovo. Foi o caso de Espanha, Azerbaijão, Geórgia, Sri Lanka e China, entre outros."Se os senhores fizerem vista grossa a este ato ilegal, quem lhes garante que partes dos seus países não vão declarar independência da mesma forma ilegal", disse Tadic aos 15 países do Conselho de Segurança."Quem pode garantir que a vista grossa não será feita para a violação da Carta das Nações Unidas, que garante a soberania e a integridade de cada Estado, quando chegar a vez do seu país?"A Rússia, aliada da Sérvia com poder de veto no Conselho, também defende que a ONU impeça a independência de Kosovo. O Ocidente insiste que Kosovo é uma "questão européia", na qual a Rússia não deve interferir.A Turquia já reconheceu Kosovo, território que dominou por 500 anos, na época otomana. O mesmo fez a vizinha Albânia, que se preocupou, porém, em não ser a primeira, evitando assim acusações de que estaria cobiçando Kosovo.Os albaneses de Kosovo saíram às ruas de Prístina, a capital, agitando e beijando bandeiras da França, da Alemanha, da Grã-Bretanha, da Itália e dos EUA. O representante britânico na cidade anunciou que sua legação ganhará imediatamente o status de embaixada.A Espanha, que enfrenta minorias separatistas, liderou o pequeno grupo de países da UE que não reconheceu a independência kosovar, alegando que "não há base jurídica internacional".Já a Itália, sensível à reação sérvia, afirmou que Roma "reconhece Kosovo como um Estado independente sob supervisão internacional" -- um lembrete de que o novo país continuará sob controle externo, como nos últimos nove anos."Cerca de 17 Estados [da UE] decidiram reagir rapidamente para evitar a criação de um vácuo com um comportamento indeciso", disse o ministro alemão de Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier.O Brasil informou em nota que é a favor da "continuidade de negociações sob os auspícios das Nações Unidas e considera que uma solução deve dar-se no âmbito multilateral".Bélgica, Luxemburgo, Eslovênia, Suécia, Irlanda, Dinamarca, Finlândia, Bulgária, Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia, Áustria e Hungria reconheceram a independência de Kosovo.República Tcheca, Holanda, Portugal, Grécia e Eslováquia ainda estão se decidindo. O Parlamento romeno já se manifestou contra, num sinal de preocupação com a possibilidade de que o exemplo de Kosovo alimente o separatismo em outras regiões dos Bálcãs.A Organização da Conferência Islâmica, que reúne 57 países, cumprimentou Kosovo pela independência.O chanceler francês, Bernard Kouchner, disse que a independência marca "o fim dos problemas nos Bálcãs."

O Kosovo independente "se dedicará à paz e à estabilidade", segundo o projeto de declaração de independência que devia ser submetido neste domingo ao Parlamento do Kosovo e do qual a AFP obteve uma cópia.A nação do Kosovo "será criada na base do plano Ahtisaari", afirma o documento em 12 pontos.Este plano, elaborado pelo emissário especial da ONU para o Kosovo, o finlandês Martti Ahtisaari, preconiza para esta província do sul da Sérvia uma independência "sob supervisão internacional" garantida por uma missão da União Européia (UE).Aprovado pelos ocidentais, o plano foi bloqueado no Conselho de Segurança da ONU pela Rússia, oposta à independência do Kosovo."O Kosovo é uma sociedade democrática, laica e multiétnica" que aceitará "a presença internacional civil e militar", prossegue a declaração. A presença civil é a da UE, que deve substituir a ONU, e a presença militar é a da KFOR, a força comandada pela Otan no Kosovo, mobilizada na província desde 1999 e que vai permanecer no território depois da proclamação de independência."Após a independência, o Kosovo assumirá as responsabilidades internacionais, garantirá a segurança das fronteiras com os países vizinhos e não recorrerá à força para resolver as divergências", segundo o texto."O Kosovo se dedicará à paz e a estabilidade na região, e declara seu desejo de manter boas relações com seus vizinhos", prossegue o documento.O Kosovo independente "garante a proteção do legado cultural e religioso", continua a declaração, em referência às dezenas de locais religiosos da Igreja ortodoxa sérvia que se encontram neste território.

A decisão unilateral de Kosovo de decretar sua independência da Sérvia, anunciada neste domingo (17), tem causado temor na União Européia de que a atitude do país estimule outros movimentos separatistas. "Existem temores de países que acreditam que essa decisão pode ser vista como precedente e levar à radicalização de grupos nos seus países que querem a independência de uma região específica".
O país que mais tem mais tem se colocado contrário à independência de Kosovo é a Espanha, "devido a um problema interno do país basco, especialmente o grupo separatista ETA". Ele contou que a Espanha também teme conflitos na ilha de Chipre, cuja parte norte é atualmente reconhecida somente pela Turquia. Nesta segunda-feira (18), o bloco deixou a decisão de reconhecer ou não a independência do novo país aos governos nacionais. De acordo com o diretor da BBC Brasil, diversos países, entre eles os Estados Unidos, já reconheceram a independência de Kosovo. Mas por conta do apoio da Rússia à Sérvia, o reconhecimento não deve passar pelo Conselho da Segurança da ONU. O país também não deve conquistar um assento nas Nações Unidas.